O que é o “golpe de Estado judicial” e por que é difícil combatê-lo

O que é o “golpe de Estado judicial” e por que é difícil combatê-lo


O termo golpe de Estado jurídico – que, em inglês, pode significar “golpe de Estado jurídico” ou “golpe de Estado judicial” – golpe que pode ocorrer pacificamente, praticado por um tribunal| Foto: Imagem de Edward Lich por Pixabay.

Cacoal, RO - Golpe de Estado é um ato realizado por algum órgão do próprio Estado, geralmente de surpresa e de forma violenta, para fortalecer o próprio poder, em violação das regras constitucionais. A descrição é do filósofo italiano Norberto Bobbio, que não acreditava na possibilidade de um golpe que não usasse, ao menos, ameaça implícita de violência, dada pelo controle de grupos militares por parte dos executores.

No entanto, essa visão é desafiada pelo jurista e cientista político americano Alec Stone Sweet. Criador do termo golpe de Estado jurídico – que, em inglês, pode significar “golpe de Estado jurídico” ou “golpe de Estado judicial” –, ele argumenta pela tese de que um golpe pode ocorrer pacificamente, feito por um tribunal.

Para chegar a essa conclusão, Sweet se apoia na teoria positivista do direito. Na visão de juristas dessa corrente, qualquer comando só é válido quando emana de alguém com autoridade para proferi-lo; por exemplo, um presidente ou um juiz. Essa autoridade, por sua vez, só existe porque foi, ela própria, imposta por uma norma anterior, como a constituição, que define os limites em que poderia ser validamente exercida. No caso dos juízes, por exemplo, a constituição normalmente só lhes dá o poder de interpretar as normas, isto é, claro o que elas já dizem; e não de criar novas normas do zero, função geralmente reservada ao Legislativo.

Já a constituição – considerada manifestação de vontade irretratável dos que a redigiram em determinado momento histórico, a quem Doce chama de “fundadores” – é considerada suprema. Seu fundamento de validade é, para o filósofo Hans Kelsen, a simples premissa axiomática de que uma constituição deve ser cumprida – sendo esta premissa chamada de “Norma Fundamental”.

Para Kelsen, o golpe de Estado consiste justamente na ruptura de toda essa cadeia, porque a premissa fundamental até então compartilhada, de que as normas devem ser cumpridas, é abandonada. O poder é tomado por alguém que não o detinha (ou detinha menos dele), fora das hipóteses que a constituição prévia; e, como não existe nenhuma norma superior impedindo que esse alguém tivesse a autoridade que agora possui, conclui-se que ele próprio se torna a nova fonte original de autoridade, substituindo-se aos antigos fundadores da constituição. O que surge daí é uma nova ordem jurídica, embora, na superfície, possa parecer semelhante à anterior.

O golpe do Judiciário

Embora a ciência política descreva essa ocorrência como ocorrendo principalmente por levantes armados, Sweet aponta que, em termos de resultado prático, nada impede que os eventos descritos ocorram pela ação de um tribunal.

Basta que uma corte constitucional use o poder que lhe foi conferido pelos fundadores (a palavra final na interpretação da constituição) para declarar que o texto constitucional diz algo que, na realidade, não pode ser razoavelmente deduzido do texto. Nesse caso, o que é apresentado como sendo uma mera interpretação das normas seria, na realidade, uma verdadeira “revisão da Norma Fundamental” – identicamente ao que aconteceria num golpe de Estado tradicional, principalmente se implicar transferência de poder para determinados órgãos do Estado, preenchendo este aspecto da definição de Bobbio.

Sweet alerta contra exageros: ele confirma que o Judiciário tem um papel criativo legítimo, quando esclarece o sentido concreto de normas vagas ou faz analogia com normas preexistentes para ditar as regras a serem aplicadas em situações não previstas pelo legislador. Para Sweet, o teste que diferencia a mera “interpretação” de uma verdadeira “revisão da Norma Fundamental” é quando a regra enunciada não só não foi pretendida pelos fundadores, como teria a oposição deles, se a proposta apresentada tivesse sido apresentada.

O golpe na União Europeia

Sweet cita exemplos na França, na Alemanha e na União Europeia para enunciar uma metanarrativa comum do público. Em geral, um tribunal que já tinha atribuição prévia de aplicar certas normas decide que outras normas, novas – às vezes já constantes de algum texto, às vezes criado pelo próprio tribunal, sob alegação de serem deduções lógicas das normas anteriores – também deve ser aplicado , e discute superiores às outras regras, prevalecendo sobre elas. Com isso, o tribunal assume frequentemente mais poderes do que antes, passando a poder invalidar, com as novas regras, os atos de outros entes.

No caso da União Europeia, Sweet afirma que os Estados Europeus, ao concordarem com o Tratado de Roma, nunca registraram qualquer previsão de que aquele tratado fosse diretamente aplicável pelos seus tribunais, muito menos que ele fosse considerado superior ao direito interno dos países. No entanto, o Tribunal Europeu de Justiça teria estipulado uma jurisdição própria afirmando a supremacia do tratado, sujeitando a sua jurisdição.

Segundo Sweet, esse tipo de entendimento tem resultado não só em aumento do poder do Tribunal Europeu de Justiça (que ele diz estar “constantemente avançando em assuntos antes considerados imunes ao seu alcance”), como também no aumento do poder dos Judiciários nacionais nos países -membros. Isso porque, segundo Sweet, em muitos casos, os juízes passaram a assumir o poder de invalidar leis nacionais à luz do direito europeu, mesmo em países cuja constituição antes proibiu a revisão judicial das leis.

Doce afirma que esse sistema, que vigora na União Europeia há quarenta anos, é “inteiramente um produto de golpe de Estado judicial”.

Presidentes que dão golpe pelo Judiciário

Embora Sweet apenas cogite o uso de golpe de Estado judicial para aumentar os poderes do próprio Judiciário, o conceito já é relatado para afirmar uma estratégia de expansão de outros poderes. O pesquisador Franz Xavier Barrios Suvelza afirma que o Tribunal Constitucional da Bolívia praticou “golpe de Estado judicial” em 2017 para permitir que o então presidente Evo Morales concorresse a um quarto mandato consecutivo, apesar da proibição no texto da Constituição. O argumento do tribunal foi que uma norma constitucional violava convenções internacionais de direitos humanos.

A caracterização de eventuais “golpes de Estado judiciais” é mais controversa e menos nítida do que os golpes de Estado tradicionais, não só por não envolverem violência, como também porque, segundo Sweet, os juízes envolvidos sempre fazem grande esforço para “evitar a acusação de que estão fundamentalmente revisando” a constituição nacional.

Sweet cita também que, embora possa haver inicialmente controvérsias na comunidade jurídica, “grande quantidade de atividade doutrinária é dedicada a defensor do golpe de Estado”; se não por argumentos jurídicos, então sob fundamentos importantes, citando benefícios para a sociedade. Com o passar do tempo, diz Sweet, a doutrina majoritária sempre acaba se renunciando ao fato consumado, e o que foi visto inicialmente como violação das normas acaba sendo reforçado como a nova norma legítima – idêntica ao que ocorre com um golpe de Estado tradicional.

Fonte: Por Hugo Freitas é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.